Somos aquilo que imaginamos ser e vivemos aquilo que acreditamos que é real… Este é o ensinamento que estamos aprendendo com os amigos espirituais e ele vale para os vivos (encarnados) e os mortos (desencarnados).
Para ilustrar a necessidade da luta contra a realidade ilusória que vivemos como realidade, eu reproduzo abaixo um texto ditado no ano de 2000 por um amigo espiritual que se auto intitulou Irmão José. Apesar de hoje compreendermos que tanto ele como os demais envolvidos na história apenas vivem num mundo criado pelas suas próprias imaginações (ego), acho que esta história nos mostra que se nos apegarmos às nossas paixões e desejos, como diz Buda no sutta Devaddha, não garantiremos um bom lugar para depois da morte.

TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PÁTRIA
Irmão José
Esta ninguém me contou: aconteceu comigo.
Estava em excursão pelo umbral inferior já há algum tempo junto com meus amigos ciganos, quando, um dia, Adolfo, o chefe dos ciganos, deu alto ao grupo de carroças e mandou chamar-me à sua. A sós, ele me relatou:

  • José, por todos os lugares por onde temos passado tenho lhe servido de guia e cicerone. Por nossa causa você tem sido bem recebido em todos os feudos do umbral, mas agora a situação é diferente: Neste local que vamos chegar agora será você o nosso guia e cicerone. Você deverá apresentar-nos e solicitar estadia para nós. Sei que não será fácil desincumbir-se da missão, mas assim é necessário, pois para os chefes deste lugar, os ciganos não prestam. Você, entretanto, é conhecido lá e sua palavra de apresentação garantirá acomodações para todos nós e evitará retaliações por parte deles.
    Estava perplexo. Era a segunda viagem que fazia ao umbral e achava que não conhecia ninguém ali. Isto porque todos fazem ideia que nós e nossos amigos não cometemos atos tão ruins para estarem no Umbral, quanto mais o inferior, que é onde vivem os ‘capetas’.
    Entretanto, uma ideia se firmava na minha cabeça e muito me assustava. Infelizmente, quando Alfredo continuou, todos os meus maus pressentimentos tornaram-se verdade.
  • O lugar para onde estamos indo agora é um quartel militar muito recente. Foi construído nos anos setenta para abrigar os militares e civis amigos que criaram os regimes ditatoriais da América do Sul. Você conhece toda esta gente e eles ainda têm em você um simpatizante. Não sabem que já se arrependeu e que hoje auxilia os exércitos do bem, por isso vão recebê-lo como a um filho pródigo.
    Reagi imediatamente.
  • Vamos pular este lugar. Passamos ao largo e não nos verão, como já fizemos com muitos outros. Eu não vou colocar-me novamente nas mãos destas pessoas. Sofri muito pelo que eles me induziram a fazer e acho que ainda não tenho estrutura para ver tudo de novo e fingir que concordo com eles. Isso para mim vai ser um inferno.
  • Infelizmente José, nós vamos ter de passar lá. É necessário que você conheça o local para relatá-lo. Existem muitas pessoas que ainda hoje clamam por justiça entre os encarnados. Muitos dos atos praticados por estes espíritos quando na carne permaneceram escondidos e, por isso, as pessoas acham que eles ficaram impunes. Agora chegou a hora de mostrar ao mundo dos ‘vivos’ que a Justiça de Deus não falha nunca.
    Os argumentos eram fortes e eu não podia fugir deles. O coração apertou, o medo me dominou, mas o meu trabalho exigia esta presença. Era importante também para mim, pois não se pode fugir para sempre do reflexo de sua vivência dos atos quando encarnado e, mais cedo ou mais tarde, temos que enfrentar tudo o que fizemos.
    Já tinha pago minha dívida como simpatizante que fui; nunca fui colaborador do regime militar. Nunca entreguei ninguém, mas a tudo assisti sem esboçar reação para salvar as vítimas. Por este motivo havia me sujado, mas já tinha pago minhas dívidas.
    Voltei para minha carroça e, enquanto a caravana continuava andando, troquei de roupa. Antes de sair, Alfredo entregou-me um terno, camisa social, gravata e sapatos que haviam sido trazidos justamente para aquele momento. Eu não sabia de nada, mas esta visita estava nos planos dos espíritos para quem trabalhava.
    Vendo-me novamente de terno e gravata muitas lembranças voltaram. Sabia que dentro do quartel muitas outras voltariam, mas tinha que me apegar à minha crença atual e ao meu amor pelos amigos espirituais superiores para que pudesse enfrentar condignamente o tempo que permaneceríamos no quartel.
    A estrada continuava e após um ligeiro aclive pude vislumbrar a fortificação. Os muros brancos caiados, as guaritas, tudo me era horripilantemente familiar. Chegando mais perto, pude ver que no alto da construção central, onde deveria ficar o quartel general, estava hasteado não uma bandeira, mas diversas: Brasil, Argentina, Chile e Paraguai ali estavam representados. Aquilo me assustou: lidar com um grupo de fanáticos já era difícil, imaginem com quatro.
    Chegamos ao portão principal e a sentinela nos deu ordem de parar. Estava mal humorado pela visão das carroças dos meus amigos ciganos. Aquele povo, criado na tradição, família e pátria não aceitava ninguém diferente deles. Saí da carroça e fui falar com a sentinela.
  • Boa noite, sou José, jornalista do Brasil e queria falar com o comandante do quartel. Quem está no comando aqui?
    Claro que José não foi o meu nome real quando encarnado, nem foi isso que disse ao soldado. Entretanto, omito o meu nome verdadeiro porque alguns familiares meus ainda estão vivos e tenho muita vergonha da vida que levei e os forcei a levar.
    Sem me responder a sentinela avisou ao corpo da guarda da nossa presença e mandou que aguardássemos. Passaram-se poucos minutos e um tenente que eu não conhecia veio me receber na guarita de entrada. Saudando-me com uma continência formal, falou o seguinte:
  • Senhor José? Tem alguma identificação para que possamos comprovar que é o senhor? Claro que me lembro do senhor na televisão, mas é que ultimamente muitos agitadores têm conseguido milagres para penetrar em nosso forte e por isso pedimos a identificação de todos.
    Já ia me desculpando por não estar com documentos quando, instintivamente, enfiei a mão no bolso de trás da calça e senti o volume de minha carteira. Aqueles meus amigos pensavam em tudo. Haviam preparado uma carteira igual a que usava quando na carne e copiaram os meus documentos. Tirei de dentro a minha identidade e mostrei ao tenente. Este exultou.
  • É o senhor mesmo! Que bom que nos achou, estamos em uma época de má sorte, mas agora com o senhor aqui poderemos soltar as nossas notícias preparadas e assim voltaremos a dominar o país. Seja bem vindo, o comandante o receberá imediatamente. Mas, os seus amigos não podem entrar com as carroças. Peça-lhes que façam uma roda perto do muro, no lado oeste, e podem acampar por ali.
    Olhei para Alfredo e vi que ele tinha compreendido a mensagem e fazia um sinal que eu devia entrar. Meu coração gelou. Na minha última encarnação havia estado em muitas dependências do exército e da polícia e ainda me lembrava das cenas que assistira ali dentro.
    Segui o tenente. Passamos pelo corpo da guarda onde o sargento gritou ‘atenção’ e todos os soldados puseram-se de pé, em posição de sentido, à nossa passagem. Olhei para os rostos daqueles soldados e comecei a compreender como o mundo espiritual é magnífico.
    Ao invés dos jovens recrutas que não sabiam direito o que acontecia dentro dos quartéis, a guarda era formada pelos inquisidores da época da carne. Reconheci dois ou três que balançaram a cabeça em sinal de cumprimento e também de reconhecimento.
    Entretanto, não eram mais aqueles mesmos homens que havia conhecido. Algo neles estava mudado. Olhei mais detalhadamente e percebi o que era: não possuíam mais o vigor físico de outrora. Seus semblantes continuavam a mostrar o orgulho e a ferocidade que tinham quando vivos, mas seus corpos estavam fracos. O tenente percebeu minha dedução e comentou :
  • Temos andado muito ocupados. Os comunistas não nos dão um minuto de sossego. Perto daqui existem duas células da guerrilha e fazemos incursões todas às noites no mato para caçá-los. Os homens estão esgotados, pois agora que foi extinto o serviço militar obrigatório os recrutas não aparecem mais. Só de vez em quando que algum antigo companheiro nos acha e podemos reforçar nossas tropas.
    Depois do corpo da guarda, o pátio. Imenso, com as viaturas muito bem limpas. Apesar de ser noite, pois no umbral inferior sempre é noite, a faina era muito grande. Homens andavam de uniforme por todo lado e executavam mecanicamente o seu serviço. Faziam a única coisa que aprenderam quando na carne: servir ao exército.
    Reparei que existiam quatro prédios centrais, cada um com a bandeira de um dos países. O meu tenente-guia explicou.
  • Pela carência de mão de obra resolvemos juntar nossas forças. Antes havia um quartel para cada país, mas agora que as deserções estão acontecendo em grande número, os nossos chefes militares acharam por bem se juntar em um único quartel. Os comunistas fizeram a mesma coisa, mas eles sempre foram adeptos do internacionalismo, não é mesmo…
    Dirigimo-nos ao prédio com a bandeira do Brasil. Posteriormente conheci todos os outros e conversei com figuras dos outros regimes autoritários que conhecia, mas destes não vou falar, pois os seus regimes devem ser analisados pelos seus próprios compatriotas.
    Entramos no prédio e fomos ao terceiro e último andar. Ao longe podia ver os outros prédios que serviam de residência às tropas. Tudo permanecia igual. Parecia que o tempo não passara dentro do quartel.
    O tenente guiou-me até uma porta dupla no fim do corredor. Depois que entramos dirigiu-se à ordenança que estava em uma mesa.
  • Este é o jornalista José. Suas credenciais já estão conferidas. O general está informado de sua presença e o aguarda.
    Voltando-se para mim, continuou:
  • Espero poder encontrá-lo mais vezes no quartel, se tiver tempo. Que bom que veio. Vamos fazer uma incursão ao aparelho da guerrilha logo mais, se quiser vir conosco será bem recebido. Temos até uma equipe que grava tudo para podermos passar na televisão. Espero que possa fazer um bom trabalho com este material também, apesar de saber que a sua parte não era a edição.
    Mais uma vez tive vontade de chorar e fugir dali. Meu passado, que achava extinto voltava e me feria o sentimento. As lembranças do que fizera para estar de bem com o poder atormentavam-me novamente.
    O ordenança mandou que eu sentasse e aguardasse, pois o general estava ao telefone organizando a incursão do dia com o seu companheiro argentino. Ao lado da poltrona onde me sentei, os boletins do quartel davam conta das grandes vitórias que o exército aliado vinha conseguindo no combate ao terrorismo.
    Sabia, por experiência própria, que só podia acreditar em dez por cento do que falava. Assim mesmo as notícias ruins não apareceriam de jeito nenhum. Mas os boletins serviram para passar o tempo enquanto esperava o general que, sabia, não estava ao telefone coisa nenhuma, mas sim me mostrando como era importante.
    Enquanto esperava entrou um outro civil na sala. Ele não me viu a princípio, mas logo o reconheci. Havia sido um político muito importante no Brasil na década de sessenta e setenta. Participara como mentor civil do golpe militar em 1964 no Brasil. Não sei por que estranhei quando o vi ali: ele procuraria sempre o poder onde quer que estivesse…
    Depois de falar com a ordenança e receber a informação de que o general não ia poder recebê-lo cedo, o dito político já ia embora quando me viu. Veio ao meu encontro.
  • José, que prazer… Quanto tempo não nos vemos! Ainda bem que chegou, estávamos mesmo precisando de vocês da imprensa séria. Estamos sem cobertura e todos os periódicos são assinados por oficiais. Agora com um civil aqui as informações vão ganhar mais credibilidade.
  • Governador, também tenho prazer em encontrá-lo. Muitas vezes pensei o que havia sido feito de vocês.
  • Estamos todos morando neste quartel. Lá fora não existe mais segurança para se viver. O general mandou construir este prédio só para nós e instalamos aqui a Câmara dos Deputados e o Senado. Continuamos trabalhando para o povo e fazemos discursos inflamados de apoio aos militares. Votamos os projetos que eles nos pedem e aceitamos as leis de exceção que eles ditam.
  • É, governador, nada mudou.
    Percebi que esses soldados de chumbo nem sabiam que haviam morrido. Achavam que ainda se encontravam em um quartel em Brasília. Tinham medo da subversão fora dos muros, mas no restante continuavam a fazer leis e promulgar atos de força para uma população que não mais existia.
    Ficamos conversando algum tempo mais falando das coisas do passado e ele atualizando-me a respeito das novas leis sancionadas. Logo, entretanto, o ordenança disse que poderia entrar e despedi-me do governador.
    Aos mais curiosos, desculpe se não cito o nome deste político, mas os acontecimentos ainda estão muito recentes e com isso poderia contribuir para que muitas pessoas dessem vazão ao seu ódio. Da mesma forma vou agir com os militares que encontrei no quartel.
    Uma coisa, porém, quero deixar bem clara: nos dias que passei no quartel encontrei praticamente todos os nomes que ocuparam o poder no Brasil, Argentina, Chile e Paraguai durante os regimes militares. Oficiais, praças e civis, ninguém escapou da repercussão dos seus sentimentos quando viveram os atos da encarnação.
    Havia ainda alguns amiguinhos meus dos tempos de redação de jornal e de televisão, mas estes eram poucos. Somente aqueles que se entregaram de corpo e alma as revoluções ainda encontravam-se por lá.
    O general veio ao meu encontro na porta do seu escritório. Abraçou-me efusivamente com o seu jeito tão meu conhecido. Conversamos aproximadamente por umas três horas. Colocou-me a par dos últimos acontecimentos no combate à guerrilha e pediu-me algumas informações sobre os demais postos existentes, pois há muito não faziam contato com eles.
    Perguntou como estava reagindo a população, pois desconfiava das informações que os agentes secretos passavam para ele. Foi aí que fiquei sabendo que não só os militares sul americanos estavam ali: no forte moravam também os integrantes da CIA que ajudaram a fomentar os golpes nos nossos países.
    Depois de muito falar sobre a situação atual veio com a pergunta que mais temia.
  • José, você continua do nosso lado?
    Não queria mentir, não podia faltar com a verdade, mas mais uma vez tive medo de enfrentar aqueles senhores. Se dissesse que não, iria direto para o calabouço e lá sofreria as torturas que tão bem conhecia; se dissesse que sim, estaria sendo desonesto com os amigos que me ajudaram a sair do umbral e que agora me destacavam com a possibilidade do trabalho para as hostes celestiais.
    Fui impreciso na minha resposta e o general entendeu o que quis entender: que eu continuava do lado deles. Por isso me deu, como despedida, um conselho.
  • Fui informado que você chegou aqui em carroça de ciganos. Espero que isto só tenha acontecido como carona, pois este povo anda juntando-se aos guerrilheiros. Eles têm sido vistos em número grande por aqui e sempre levam os recrutas que estão fraquejando nas suas determinações de combater a guerrilha.
  • Eles também têm sido vistos junto aos acampamentos dos guerrilheiros, continuou o general. Acreditamos que eles estão sequestrando nossos recrutas e os levando para o acampamento onde os comunistas fazem-lhes lavagem cerebral e os colocam para lutar contra nós.
    O general não sabia e não compreendia que os ciganos ajudavam o plano espiritual do bem no salvamento das almas que iam adquirindo o arrependimento dos seus atos na carne. Com toda certeza meus amigos ciganos haviam retirado do quartel e do acampamento dos comunistas aquelas almas que procuravam o arrependimento.
    Passei dois dias entre os militares. Visitei os outros prédios acompanhado pessoalmente pelo general. Os que eu conhecia apenas de rosto no noticiário me foram apresentados pelo chefe do grupo brasileiro. Conversamos sobre a situação da América Latina como um todo e especificamente dos problemas de cada país. De cada entrevista saia mais convencido que eles não se sabiam mortos. Continuavam procedendo como se estivessem no poder dos seus países e me davam entrevistas que pediam fossem publicadas nos jornais de lá.
    Visitei os locais de torturas que se encontravam exatamente como eram na Terra. Visitei as dependências do DOI-CODI, do SNI e da Polícia Federal. Conversei com os agentes que apenas reclamavam da quantidade pequena de trabalho que tinham para fazer. Participei de uma patrulha e conheci o acampamento dos comunistas.
    Na verdade os militares e os comunistas não entravam em combate físico, mas sim com propaganda ideológica. Quando a patrulha aproximou-se do acampamento um alto falante iniciou a tocar a Internacional Socialista ao fundo, enquanto que um narrador trazia máximas de Stalin, Lenin e Marx. O exército então colocava seus aparelhos de som para funcionar. O Hino Nacional brasileiro e os dos demais países participantes eram ouvidos e o oficial fazia então a propaganda baseada nos conceitos da tradição, família e pátria.
    Encerrados meus dias no quartel solicitei nova audiência com o general e expliquei que precisava ir embora para poder levar as notícias para o povo. Não estava mentindo, pois na verdade é o que estou fazendo agora. Já de roupa trocada, com as vestes ciganas que tanto me orgulhava de vestir, fomos nos afastando do quartel. De longe, vi as bandeiras pela última vez e pensei:
    Tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
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